Jacopo Crivelli Visconti. “O que me fascina neste mundo são as histórias pequenas e grandes que estão em cada peça”

A Fundação Albuquerque, além do museu do Linhó, tem mais alguma atividade?
Não. A Fundação foi criada pensando na preservação e na divulgação da coleção. E tem atividades relacionadas com isso, principalmente a exposição de produção de cerâmica contemporânea. Espero já no segundo semestre, ou no início do ano que vem, começarmos também um programa de residências com investigadores que possam fazer pesquisas sobre a coleção.
Isso destina-se a professores, doutorandos…?
Sim, pessoas que tenham já uma pesquisa e um interesse nos assuntos que a porcelana de exportação abrange, que são muitos, tanto do ponto de vista histórico, como das questões mais contemporâneas que estão nessa coleção e que são um pouco o ponto de partida para a seleção dos artistas que a gente convida para a programação contemporânea. Theaster Gates é um perfeito exemplo nesse sentido, porque através de uma prática de oleiro, como ele sempre se definiu, traz questões muito contemporâneas, que reverberam, de certa forma, na exposição da coleção.
E o Jacopo faz isso sempre a partir de São Paulo?
Estou em São Paulo, mas no sábado já estou em Sintra. Estou indo e voltando, digamos. Não sei se vou mudar mesmo para Portugal. Por enquanto tem uma equipe excelente aí, as coisas estão fluindo e a ideia também não é ter uma programação tão intensa. É intensa, mas não é um nível que exija uma presença constante.
Percebi, pelo seu currículo, que está mais ligado ao campo da arte contemporânea. No entanto, está à frente da fundação de uma forma global, certo?
Sim, estou à frente da fundação de uma forma global. Mas acho que, com a experiência que tenho e com as ajudas que a gente tem localmente, conseguimos dar conta bastante bem da preservação da coleção, que é a nossa preocupação principal. E eu também não vou fazer a curadoria das exposições da coleção. Daí o desejo de chamarmos a cada exposição um pesquisador que possa trazer uma visão diferente. Para a primeira exposição, chamámos a Becky MacGuire, uma pesquisadora norte-americana, e ela selecionou aproximadamente 15% da coleção. Isso é algo que nos interessa: ter olhares diferentes, vindo para Sintra estudar a coleção e sugerindo leituras diferentes
Possui um doutoramento em arquitetura. Teve algum envolvimento no projeto?
Cheguei tarde. Entrei na fundação quando a parte de arquitetura já estava inteiramente definida. Acompanhei a fase final da obra, o projeto já estava feito. Mas, honestamente, dificilmente poderia ter contribuído muito, porque acho que o projeto está impecável. A relação entre o contemporâneo e o histórico e a ideia de fazer um pavilhão onde você consegue chegar de uma maneira muito natural na entrada e depois o outro, depois de atravessar o jardim, tudo funciona muito bem.
Sabendo que só está exposto cerca de 15% do acervo, não faria sentido ter um espaço que permitisse mostrar mais da coleção?
Já se construiu um espaço muito grande. E, além do espaço expositivo, a gente precisava também do espaço para o depósito. E depois do depósito tem os escritórios. Isso é o normal em qualquer instituição cultural. Quando se olha só para o espaço expositivo, a gente não pensa nos outros espaços que são necessários. Considerando a totalidade da área construída, eu acho que a parte dedicada à coleção já é relativamente generosa. E é possível fazer uma exposição mais densa. Neste caso, foi uma escolha da Becky jogar luz sobre peças específicas. Ela optou por fazer uma exposição com bastante respiro entre as peças. Mas, pelo nosso cálculo, a gente poderia chegar a ter expostos ao mesmo tempo 25-30% da coleção. Isso é algo que consideramos relativamente confortável. Se você conseguir mostrar um terço da coleção, e comparado com as percentagens que a gente vê em vários museus, já é significativo.
Por que motivo esta coleção não ficou no Brasil e veio para Portugal?
Tem várias razões para isso. O dr. Renato é brasileiro, mas tem também nacionalidade portuguesa. Ele morou em Portugal e toda a família tem uma relação afetiva com o lugar, com a Quinta de São João, como se chamava antigamente. Existia essa relação familiar. Além disso, e talvez seja a razão principal, esta é uma coleção que fala muito com a história de Portugal. Há um conjunto muito significativo de primeiras encomendas, das peças mais antigas encomendadas por Portugal, que foi o primeiro país a começar essa troca com a China. E, além disso, há um conhecimento geral na população portuguesa do que é a história da porcelana, a história da relação entre países europeus e países asiáticos, que é muito diferente da que existe no Brasil. Eu entrei depois de a decisão já ter sido tomada, mas de todos os pontos de vista me parece uma decisão muito acertada. Parece-me que é um património que fala mais diretamente à história e à cultura portuguesa, até do ponto de vista crítico, das discussões que isso pode suscitar, do que se a gente fosse abrir essa fundação no Brasil.
Há pouco referiu a exposição que está no pavilhão contemporâneo. Sendo a primeira, vai estabelecer um padrão para o futuro. Como chegou ao nome do Theaster Gates? Essa escolha para si foi óbvia?
Acho que podemos dizer que foi óbvia no sentido de que é um artista que sintetiza muitas das questões que eu gostaria que a programação contemporânea da Albuquerque Foundation trouxesse. A história da porcelana de exportação engloba muitas questões que são muito relevantes hoje em dia. Questões económicas, antes de mais nada, de relações geopolíticas, questões até de transformação de guerras comerciais em guerras de outra ordem. Não preciso falar mais nada de quão atual isso é. A gente está vivenciando isso com as guerras tarifárias entre os Estados Unidos e China. Depois há questões de silenciamento da identidade da autoria das peças. Uma mínima parte das peças têm nome e sobrenome de autor. Na sobreposição dessas dinâmicas económicas, sociais, políticas, a identidade das pessoas era apagada. Desde o começo, eu queria muito que a programação contemporânea trouxesse de maneira clara essas questões para que elas pudessem reverberar, digamos, nas leituras que a gente faz da coleção. Com essas premissas, acho o Theaster Gates um artista realmente perfeito. Ele sempre fala de si como um potter, um oleiro – a produção de cerâmica é algo essencial na maneira como ele se relaciona com o sistema da arte contemporânea. E desde o começo dos anos 2000, ele vai todos os anos para o Japão para estudar com mestres locais e para produzir cerâmica lá. Mas, ao mesmo tempo, é um artista que coloca sempre em primeiro plano questões, mais uma vez, sociais, raciais e económicas. Toda a luta que ele faz contra a gentrificação de bairros de Chicago a partir de uma perspectiva racial, por exemplo, é central na maneira como ele é entendido e lido na produção contemporânea. A partir dessas premissas, eu quis trabalhar com ele e liguei para ele. E ele imediatamente entendeu a relevância, digamos, de fazer uma exposição para inaugurar essa programação contemporânea. E imediatamente propôs a obra principal, que está no pavilhão, que é aquele piso de cerâmica de Tokoname. Acho que naquele momento nem ele nem eu nos demos conta de quão perfeito aquele trabalho é, porque é produzido por um artista de sucesso, objetivamente, ocidental – por muito que ele seja disruptivo nas lógicas sócio-políticas e raciais, é um artista de sucesso ocidental que vai para o Oriente, nesse caso para o Japão, e trabalha com mão de obra local, que é citada na ficha técnica da exposição, mas que objetivamente desaparece, e ele tem consciência disso. Ele produz um trabalho no Japão que viaja para Portugal fazendo exatamente a mesma rota marítima que 99% das peças da coleção fizeram. E passou pelos mesmos perrengues [contratempos] que havia naquela época, porque ficou preso nos portos, ficou preso na alfândega… Todos os problemas que muitas peças da coleção passaram, as peças produzidas pelo Theaster no Japão passaram até chegarem em Portugal e serem mostradas num lugar que é um lugar de elite – algo que, objetivamente, a gente quer quebrar. E o próprio Theaster deu umas visitas para mim, em que falou uma coisa fascinante: que ficou desde o começo fascinado com a porcelana. Em inglês ele falou da ‘search for whiteness’ [busca pela brancura] que a porcelana sempre representou. A porcelana, no seu começo, virou o chamado ‘ouro branco’ porque teoricamente tinha essa ‘pureza’ e capacidade de ficar tão branca como nenhum outro material cerâmico. Quando Theaster, a partir da consciência racial dele, fala dessa ‘search for whiteness’, é evidente que todas essas questões que eu estou tocando estão muito presentes, e acredito que essas questões vão pautar um pouco a programação contemporânea, para que, quase por osmose, entrem nas leituras que o público faz da coleção permanente. Nesse sentido eu acho que a arquitetura funciona bem, porque é muito natural. Você passa primeiro pela coleção, faz uma leitura mais histórica, mais académica, da coleção. Depois desce até à exposição contemporânea, e de repente essas questões todas são colocadas e, quando você volta a subir, de repente entra de novo na coleção, ou passa por lá, e aquilo continua reverberando na sua cabeça.
Falou do fascínio de porcelana. Não sei se o engenheiro Renato também o contagiou com esse fascínio por este material que é quase mágico.
Muito. Ele é uma pessoa incrível, realmente incrível. Primeiro alguém na idade dele – ele tem 97 agora – com a lucidez e com a paixão e conhecimento tão profundo que ele tem da coleção. Eu não sou nenhum expert nessa área, mas estou estudando e tive a oportunidade de estar com a Becky e com outras pesquisadoras que passaram já pela coleção, ouvindo histórias, e vejo que o conhecimento do dr. Renato é extraordinário. Mas além do conhecimento académico, ele tem uma relação muito pessoal e muito viva com cada uma das peças. Eu tive a sorte de estar lá no dia em que ele chegou pela primeira vez à fundação depois de as peças terem chegado, porque as peças foram mandadas do Brasil há muito tempo e a obra demorou muito mais do que o previsto e as obras ficaram guardadas em armazéns alfandegários. Ele não pôde ver as ‘meninas’, como ele fala, por muito tempo. E aí o reencontro dele com as peças foi emocionante. É algo inacreditável que alguém na idade dele, e com décadas de história, ainda possa estar tão apaixonado e com uma memória tão viva de toda a relação com cada peça. Porque em muitos casos ele conheceu as peças muito antes de conseguir de fato comprar elas, foi atrás das peças. Ia vê-las nas coleções de outros, sabia que aquela era a peça que faltava para um discurso ficar mais completo dentro da coleção. E aí ficava estudando, vendo onde tinha peças parecidas, quantas existiam, que museus as tinham, pelas mãos de quem tinham passado ao longo de séculos. Ele é capaz de contar histórias assim para a imensa maioria das peças. Só por isso, já teria me passado a ‘malaise’ [‘doença’] da porcelana. Mas além disso, o que me fascina nesse mundo, além da qualidade estética e da técnica inacreditável, são as histórias, histórias pequenas e grandes que estão em cada uma das peças. E quanto mais a coleção fica conhecida, mais pessoas com conhecimento nos vêm visitar e eu vejo que todo o mundo que tem um conhecimento nessa área é muito comunicativo. É como se as pessoas gostassem de se juntar ao redor dessas peças e contar as histórias que conhecem. Tenho tido uma quantidade de visitas muito inspiradoras.
O Jacopo é italiano mas, pelo seu sotaque, presumo que já vive no Brasil há bastante tempo. Qual é que é o seu percurso?
Eu sou italiano, nasci em Napoli, cresci em Napoli, me formei e aí viajei pela Europa. Morei na Espanha, na Alemanha, alguns anos e aí casei com uma brasileira. Vim para o Brasil em 2001, já faz bastante tempo. Trabalhei um tempo na Bienal de São Paulo alguns anos. Depois comecei uma carreira de curadora independente, que é o que vim fazendo esses anos todos até começar na Albuquerque Foundation. E ainda faço algumas curadorias independentes no Brasil e inclusive na Itália.
E como chega à Albuquerque Foundation?
Cheguei pela Mariana Teixeira de Carvalho, que é neta do dr. Renato e é a CEO da Fundação. A gente se conhece há muito tempo, porque ela também vem do contemporâneo. Ela trabalha tanto no Brasil como fora, em galerias e com coleções. A gente se conhecia, mas ficámos mais próximos quando eu estive de curador da Bienal de São Paulo e ela estava num dos conselhos da Bienal. Então nessa época a gente ficou mais próximo. Ela ficou me contando do projeto e eu fiquei fascinado. Num primeiro momento, pensámos que eu poderia assumir só a programação contemporânea e depois acabámos por chegar na ideia de eu assumir a direção mesmo sem morar em Portugal, pelo menos num primeiro momento.
Jornal Sol